"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

A saga do direito à saúde: 28 anos de construção e desconstrução

 Lenir Santos

Garantir direitos e não efetivá-los parece ser a história de países de tardia democratização e sentimento de cidadania. No Brasil, no caso da saúde, vive-se o permanente paradoxo de se ter bases jurídicas avançadas, compatíveis com o Estado de bem-estar social e padecer do mal de sua não efetividade ante políticas orçamentárias incompatíveis com sua sustentabilidade. Podemos afirmar, sem medo de errar, que, em 28 anos, a saúde dos brasileiros nunca foi uma prioridade dos governos.

O Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição em 1988, sempre teve orçamentos aquém de suas necessidades. Um sistema que se implantou e sobrevive à duras penas, e mesmo que possamos dizer que, apesar dos pesares e da má vontade dos governantes, conseguiu ser mais vitorioso do que fracassado quando comparado ao que existia anteriormente. Na atual crise brasileira, as pessoas mais combativas e conscientes sentem-se mais vulneráveis e pessimistas pela trágica escolha governamental de asfixiar todos os direitos sociais pela via fiscal, o que levará a saúde a enfrentar seu pior embate.

Os grandes problemas enfrentados pelo SUS como o baixo financiamento; a gestão pública insatisfatória; a falta de parâmetros orientadores do padrão de integralidade; a relação entre o poder público e o setor privado, desregulada; a formação de profissionais da saúde para o setor privado e não para o SUS; as lacunas legislativas quanto a aspectos relevantes e o mais problemático de todos, a falta de sentimento de pertencimento da população com o direito à saúde. Outras dificuldades, como a judicialização da saúde, decorrem dessas macrocausas, como a inadequação dos serviços às necessidades de saúde das pessoas.

O que ocorreu no Brasil a partir de 1988 foi a negação prática do que a Constituição tutelou: direito à saúde de acesso universal, igualitário e integral, financiado com recursos públicos. Essa negação se deu pela via do orçamento durante 28 anos. A forma adotada pelos governantes foi a procrastinação da garantia de recursos suficientes, afora o descaso com os vazios legislativos que ainda existem. Enquanto países, como a Espanha, já discutem projeto de lei sobre o direito de morrer dignamente, não conseguimos nem mesmo ter regiões de saúde efetivas, disciplinar a integralidade da assistência à saúde, respeitar a autonomia dos entes federativos quanto ao rateio dos recursos da saúde.

Ao longo do tempo, o efeito deletério foi tornar o SUS um sistema pobre para pessoas pobres, onde aos poucos o capital privado nacional (e agora internacional) atinge seu intento que é conquistar uma população com pouco sentimento de pertencimento aos seus direitos, cooptada pela mídia, pelo glamour do consumo e da propaganda que vende a vida eterna, levando as pessoas a desejarem comprar no mercado o que é direito.

No presente, a crise fiscal e política que se abateu sobre o país foi motivação e, por que não dizer, subterfúgio para propor tornar o piso da saúde teto congelado, lembrando que esse piso hoje é insuficiente em ao menos 40% das reais necessidades sanitárias. Diante da crise fiscal, estabeleceu-se que a contenção dos gastos públicos é a única solução e que chegou o momento do “remédio amargo”: cortar o gasto com saúde e educação, sob o manto de que, melhorando as condições econômicas do país, todos ganham (e como disse o presidente da Câmara dos Deputados, os cidadãos poderão comprar planos de saúde...).

Nenhuma medida de mudança quanto a desonerações fiscais, criação de imposto sobre grandes fortunas, sonegação fiscal, reforma tributária que enfrente a injustiça distributiva, federalismo distorcido que canibaliza os municípios, juros altos e swaps cambiais, entre outros. Disso não se falou como proposta de reforma necessária, justa e democrática.

Uma das motivações da PEC 55, aprovada em 30 de novembro, no Senado Federal, é comer de vez o que sempre foi feito pelas beiradas, que é a insurgência contra a saúde universal e igualitária e a vinculação de receitas para seu financiamento. Isso está na exposição de motivos da PEC 241 (encaminhada à Câmara dos Deputados) de modo claro. Os gastos com despesas sociais serão congelados por 20 anos, sem menção às despesas com o pagamento da dívida, que abocanha metade das receitas da União; o gasto com saúde é de 1,7% do orçamento da União e não será esse gasto o responsável pelo desequilíbrio das contas públicas. Os juros que incidem sobre a dívida pública de 14% poderão asfixiar a economia do país; os 1,7% do orçamento público com saúde, não.

A PEC 55 é uma forma camuflada de se dizer que a efetividade do direito à saúde jamais se realizará porque, se os recursos são insuficientes, daqui a 20 anos, com supressão de por volta de R$ 600 bilhões, o SUS não será um sistema nem universal, nem integral e nem igualitário. Pode-se dizer que esse congelamento é um estado de exceção na garantia de direitos sociais, o que afronta o artigo 60, parágrafo 4º da CF. No dia da promulgação da referida emenda constitucional estaremos enterrando o SUS.

Para ilustrar o desinteresse governamental com o SUS, traçamos abaixo brevíssimo relato histórico, por datas, dos ataques orçamentários desde seu nascimento (1988), com o golpe final da PEC 55:

1989/1992: 30% dos recursos do Orçamento da Seguridade Social (OSS) deveriam financiar a saúde (LDO-LOA); 10% desse valor foram destinados ao pagamento de serviços que não eram do setor saúde, como alimentação, inativos, saneamento, assistência social;

1993/1994: grave convulsão no financiamento pelo não repasse de recursos do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) para a saúde. Resultado: empréstimo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) de R$ 2 bilhões, pagos pelo Ministério da Saúde, que não foi o autor da dívida;

1994: Fundo de Emergência Social, precursor da DRU, retira 20% dos recursos da saúde;

1994: conversão da URV para o Real: perda de 30% dos recursos da saúde, enquanto as demais áreas do governo tiveram a conversão equivalente ao gasto do momento, a saúde foi prejudicada com valores menores;

1997: CPMF: redução de seu valor para a saúde. O que foi dado com uma mão foi retirado com outra. O orçamento da saúde com a CPMF deveria ser acrescido de R$ 6,9 bilhões, saindo de R$ 14,3 bilhões para R$ 21,2 bilhões; ficou em R$ 17,6 bilhões;

1998: reforma constitucional de 1995 destinou grande parte das contribuições sociais do orçamento da Seguridade Social para a Previdência Social, sem correspondente compensação de recursos para a saúde. Essa reforma levou o nosso saudoso jurista Geraldo Ataliba a dizer que não havia necessidade de se fazer essa reforma que prejudicaria a saúde: “A Constituição tem minúcias, diz algumas coisas que a rigor seriam puramente uma questão de lei e não de constituição...porque as forças políticas brasileiras representam a elite que teoricamente aceitam gastar dinheiro com os pobres, quer promover o cidadão, mas na hora de tomar decisão a escolha é sempre outra”;

2000: EC 29: vinculação do valor do ano anterior, acrescido da variação nominal do PIB. Isso se constituiu numa medida do Congresso Nacional na contramão do governo. Contudo, o governo à época tentou implantar a tese de que o ano de 1999 seria base permanente para o cálculo (base fixa), e não o valor de cada ano. Mas o governo foi vencido em sua tese, felizmente, ao menos uma vez;

2007: extinção da CPMF com grande perda para a saúde, sem reposição;

2015: EC 86, com fixação de 15% da RCL de modo progressivo: 13,2% de 2016 a 2020 (15%), com perdas de por volta de R$ 9 bilhões em 2016. Além do mais, houve no mesmo ano a abertura do capital estrangeiro para a saúde, ao arrepio da Constituição, estando sub judice no STF;

2016: aumento da DRU de 25% para 30%;

2016: votação pela Câmara dos Deputados da PEC 241 e no Senado da PEC 55 que definitivamente congelará os recursos da saúde por 20 anos, com perdas de mais ou menos R$ 600 bilhões no período, o que significa dizer uma forma de acabar com o direito à saúde sob o manto da responsabilidade fiscal.

A intensão é colocar fim à vinculação dos recursos da saúde e, por consequência, ao SUS universal, igualitário e integral. Nunca o país conviveu com um planejamento de longo prazo que previsse o acréscimo progressivo de recursos para uma saúde nos padrões de países europeus que aplicam por volta de 7% de seu PIB.

A judicialização é uma demonstração da ausência desse compromisso; tanto que em 2014 foram por volta de 859 mil ações e, se suas causas não forem enfrentadas, ela continuará crescente, exceto se o Poder Judiciário entender que o congelamento do gasto público pode colocar limite à efetividade do direito à saúde. Como congelar o que é insuficiente sob o argumento de que o gasto é excessivo? Se é insuficiente, não pode ser excessivo. Uma contradição em termos.

A falta de confiança, credibilidade do cidadão em relação ao seu país, tanto quanto dos investidores nacionais e internacionais em razão da alarmante corrupção no meio político, com quebra de segurança jurídica contratual, também são causas da crise brasileira. Tanto é fato que autoridades governamentais vêm repetindo à exaustão que é necessário dar segurança jurídica aos investidores nacionais e internacionais, só se esquecendo de incluir a segurança do cidadão. Nessa linha de raciocínio, impõe-se garantir também segurança ao povo no tocante à efetividade de seus direitos sociais, os quais devem estar resguardados em tempos de crises, como medida de boa governança e justiça social.

O Estado não vive para si mesmo, mas para o seu povo e, por isso, se fundamenta em suas leis e na garantia de seu cumprimento. Seu guia é a Constituição, que não pode ser emendada de modo a alterar sua essência. O novo constitucionalismo tem, dentre seus princípios, a segurança jurídica, os direitos adquiridos, a não retroatividade, a boa-fé, a confiança recíproca e o respeito a valores éticos e morais.

Seria importante firmar minimamente alguns valores que os governantes, sob nenhum pretexto, podem transgredir:

Respeito à Constituição, seus princípios e valores sociais: o governante tem que respeitar os princípios e normas constitucionais que não podem ser violados sob nenhuma forma ou pretexto;

Vedação de retrocesso à efetividade dos direitos fundamentais: o governo deve garantir políticas públicas e orçamento adequado ao alcance da efetividade dos direitos constitucionais, com programas que visem à diminuição das desigualdades sociais, com políticas de equidade social;

Limites às mudanças constitucionais: vedação à proposta de emenda à Constituição que imponha retrocesso a direitos e garantias sociais, sem tergiversação ou subterfúgio. Em caso de crise fiscal é dever discutir com a sociedade a alocação dos recursos públicos.

Esses standards, se cumpridos, garantiriam à população e a investidores nacionais e internacionais estabilidade e confiança necessárias. A população não pode viver de “soluços” em seus direitos. As escolhas em relação ao gasto público não podem retroceder na garantia dos direitos sociais.

A Constituição não pode ser um repositório inconsequente de normas, sem materialidade na vida real. Seu cumprimento tem que ser efetivo, com planejamento público quanto à diminuição das desigualdades, erradicação da pobreza e outros elementos de desenvolvimento social. Os direitos fundamentais não podem ficar relegados a um plano inferior, sujeitando seus cidadãos à insegurança quanto ao futuro de seu país. Como diz Norberto Bobbio, chega de falar em direitos; é hora de garanti-los.

Infelizmente a PEC 55 descumpre os standards acima mencionados. O legislador constitucional, ao vincular recursos mínimos para a garantia da saúde e educação, o fez como medida de segurança, exatamente para proteger esses direitos contra as omissões públicas recorrentes pela rota do financiamento.

Dados de diversas entidades e órgãos vêm demonstrando que a saúde não se sustentará sem o necessário aumento de serviço a cobrir déficits que se acumulam desde 1988; nem estamos a falar dos necessários acréscimos que deem conta do crescimento demográfico, envelhecimento da sociedade, inovações farmacologias e tecnológicas e inflação estrutural da área.


O grave é que se está invertendo a política pública, com imposição de perdas em vez dos acréscimos devidos, que não são luxos nem abusos, mas direitos fundamentais. A pergunta que fica é qual o sentido de uma nação? 

Um Estado Democrático de Direito não pode conviver com o descumprimento de preceitos essenciais à justiça social. A saúde é uma das condições de vida digna da pessoa e do exercício das liberdades humanas.

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