"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 2 de agosto de 2014

Parlamento britânico aprova lei de reforma da câmara dos lordes


A crise da legitimidade parlamentar é praticamente universal. A democracia representativa é uma das grandes conquistas da civilização ocidental e sua evolução pode ser associada a alguns marcos históricos, nos quais se deu a afirmação da aristocracia e da burguesia sobre o poder centralizado na figura do monarca. São exemplos disso os episódios que permitiram a aprovação da Magna Charta de 1215 e do Bill of Rights de 1689. Quanto a este último documento, é de ser lembrado que sua aprovação pelo rei Guilherme III e pela rainha Maria decorreu do sucesso da Revolução Gloriosa de 1688-1689, que destronou o rei católico Jaime II, da dinastia escocesa dos Stuart.

No século XVIII, a Revolução em França, de 1789, surgiu com idênticos propósitos aos da revolução inglesa de 1688-1689. Uma de suas fontes de inspiração foi a Revolução Americana de 1776, que aprovou uma constituição presidencialista (uma cópia do modelo britânico então existente, com a diferença de se ter um rei eleito, o presidente dos Estados Unidos), mas que também conferiu enorme importância ao Congresso. A experiência francesa é um excelente paralelo ao que ocorreu no Reino Unido, quase 100 anos antes, e sua leitura metafórica está muito bem posta no clássico de Charles Dickens, A tale of two cities (Um conto de duas cidades), de 1859. O centro da metáfora dickensoniana está em que os aristocratas britânicos uniram-se à burguesia para destronar um rei impopular, ao passo em que os franceses não souberam transformar o falido modelo absolutista e terminaram por lançar a nação em um banho de sangue.

Nos séculos XIX e XX, a participação popular no processo político-representativo tornou-se crescente e foi alimentada por outras revoluções, especificamente a Revolução Industrial  (que não foi um movimento político e sim econômico) e a Revolução Russa de 1917. Os britânicos, uma vez mais, souberam antecipar-se às exigências históricas e realizar reformas suaves em seu sistema político. Sob a liderança de políticos conservadores e liberais, como Benjamin Disraeli, 1o Conde de Beaconsfield (1804-1881), David Lloyd George, 1° Conde Lloyd George de Dwyfor (1863-1945), e Winston Spencer Churchill (1874-1965), o único dos três com ancestralidade nobre desde o século XVII, aprovaram-se leis que ampliaram o direito ao voto aos membros das classes trabalhadoras e que reformaram o sistema eleitoral, a fim de eliminar práticas espúrias como distritos eleitorais fantasmas (os famosos “burgos podres”) e a compra de votos.

O processo britânico de democratização radicalizou-se durante as duas Grandes Guerras do século XX. Um exemplo disso está em que Lloyd George e Winston Churchill conseguiram aprovar o Parliament Act 1911, que retirou da Câmara dos Lordes o poder de veto em matéria orçamentária, não sem antes ter ocorrido a famosa crise constitucional de 1910, na qual o Gabinete Liberal ameaçou criar 400 novos pares do Reino para a Câmara dos Lordes e obter a aprovação da lei orçamentária com uma nova maioria naquela casa parlamentar. Não é sem causa que alguns historiadores atribuem a vitória britânica em ambas as guerras à superioridade de seu regime político sobre os arcaicos modelos monárquicos das potências centrais — Alemanha e Áustria-Hungria. O fim da era czarista na Rússia, destruída pela Revolução de Outubro, é também atribuído ao anacronismo de suas instituições, dado que os russos começavam a experimentar um enorme crescimento industrial no início do século XX.

Essa radicalização democrática chegou ao século XX. No entanto, a hipercomplexidade da sociedade contemporânea revelou o esgotamento do modelo parlamentar clássico, que hoje tem de conviver com diversos e contraditórios fenômenos, que ora solapam sua legitimidade popular, ora põem em xeque a legitimidade moral desse modelo que atravessou os últimos séculos e conseguiu sobreviver a enormes desastres históricos. Algumas dessas contradições podem ser inventariadas:

a) A maior democratização do processo eleitoral trouxe para os parlamentos —em seus diferentes níveis — os representantes de setores sociais excluídos, mas também permitiu que muitos vereadores, deputados e senadores fossem eleitos, com votações estrondosas, graças a seu exotismo ou a duvidosos méritos em certas atividades.

b) Generalizou-se o alheamento do Poder Legislativo de profissionais liberais bem-sucedidos, servidores públicos qualificados, professores, médicos e outros integrantes da “classe média”. Os elevados custos de se participar das eleições e o recrudescimento de métodos sujos antes, durante e depois do processo eleitoral tornaram bem pouco atrativo o Parlamento para aquelas personagens, que, durante boa parte do século XX, ocuparam posições de protagonismo nas casas legislativas.

c) A perda de massa crítica nos parlamentos, especialmente nas câmaras altas, que eram responsáveis pela estabilização do processo legislativo, deslocou o cenário das decisões políticas fundamentais para a cúpula do Poder Judiciário, de modo específico o tribunal constitucional. O “protagonismo judiciário-constitucional relutante” é sentido não apenas no Brasil, mas em países tão diferentes como a Tailândia, a Turquia e o Egito, estes últimos em uma fase histórica de disputa (ou de busca de equilíbrio) entre os militares, o Parlamento e o Tribunal Constitucional.

d) A criminalização da política avança a passos largos e, para além da retirada de cena dos antigos líderes intelectuais da cena parlamentar, identifica-se agora a discreta saída dos capitalistas dos congressos. Evidentemente que se continuará com o ingresso sazonal de alguns líderes empresariais, que buscam um reconhecimento social de um mandato para seu êxito nos negócios privados. No entanto, os riscos para a reputação desses indivíduos, decorrente do processo eleitoral, e a perda de relevância decisória dos parlamentos têm atuado para que esse fenômeno se manifeste e não apenas no Brasil.

Um dos símbolos mais evidentes desse trágico processo de degradação da mais importante das instituições democráticas, o Parlamento, pode ser identificado na pátria da democracia representativa, o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte. (...)

O projeto, apresentado em junho de 2012, transformou-se em lei aos 14 de maio de 2014. E é sobre seus principais aspectos de que se cuidará agora.

A nova lei, intitulada de House of Lords Reform Act 20141, aplica-se à Inglaterra, ao País de Gales, à Escócia e à Irlanda do Norte (seção 7, item 4), embora suas três primeiras seções, que tratam da renúncia, do não comparecimento e da condenação por serious offence2, terão vacatio de três meses, contados de 14 de maio de 2014.

O House of Lords Reform Act 2014 introduziu medidas inéditas no regime parlamentar britânico, no que se refere ao modo como são tratados os pares do reino que integram a câmara alta.

A primeira inovação está em se permitir a aposentadoria ou a renúncia de um lord (seção 1), o que era tido como algo impossível em termos constitucionais. A renúncia é irretratável e não terá efeitos retroativos, devendo ser comunicada ao Secretário do Parlamento.

Na seção 2, encontram-se as normas para o não comparecimento dos lords às sessões parlamentares. O membro da Câmara dos Lordes, que é um par do Reino e que não compareça em 1 sessão, deixará de integrar a casa no início da sessão seguintes (item 1). Essa regra só terá aplicação se for certificada a ausência pelo Lord Speaker, com bae nos registros oficiais da casa, e se o par não tiver obtido licença para se ausentar, nos termos do regimento da Câmara dos Lordes. É possível também relevar a aplicação da pena se a Câmara entender que o par encontra-se justificado por “circunstâncias especiais”, além de outras hipóteses menos relevantes.

A seção 3 prevê a hipótese de condenação do lord por serious offence (item 1). Para fins disciplinares, essa condenação só terá efeito no Parlamento se: a) o Lord Speaker certificar que a pessoa, na condição de membro da Câmara dos Lordes, foi condenado criminalmente e que a ordem judicial determinar a prisão ou a custódia por tempo indeterminado ou por mais de um ano (item 2). É irrelevante para os fins do item 2, se o crime for cometido por alguém que já é membro da Câmara dos Lordes e se a ordem judicial ou seus efeitos ocorrem no Reino Unido ou em outro lugar, desde que a casa alta entenda que seja possível aplicar o item 1 a esse tipo de condenação.

A reforma aprovada em 2014 é uma resposta “possível” a uma demanda por uma mudança substancial no Parlamento britânico. Há defensores de soluções mais radicais como a pura e simples extinção da Câmara Alta, como tem ocorrido em diversos países do mundo, ou de sua transformação em um Senado, com representantes eleitos e não mais com membros vitalícios.

Infelizmente, escândalos como a “venda” de títulos de nobreza e de vagas na Câmara dos Lordes, durante a administração do primeiro-ministro trabalhista Tony Blair, e, mais recentemente, o envolvimento de Lord Hanningfield em fraudes para obtenção indevida de ressarcimento de despesas e diárias têm minado a credibilidade da House of Lords. O exemplo do barão Hanningfield é bem característico da triste realidade da “moderna” Câmara dos Lordes: nascido em 1940, Paul Edward Winston fez carreira política como representante dos jovens agricultores e avançou nas fileiras do Partido Conservador levantando a bandeira da autonomia dos governos locais. Em 1998, ele foi nobilitado como barão e tornou-se membro da Câmara Alta. Em 2009, Lord Hanningfield, Lord Taylor of Warwick (filho de imigrantes jamaicanos e indicado pelo Partido Trabalhista) e os deputados trabalhistas Elliot Morley, David Chaytor e Jim Devine foram acusados criminalmente no “Escândalo das Despesas Parlamentares”.

Um paradoxo nessa crise é que a origem da maior parte dos “lordes modernos” é socialmente idêntica: pessoas oriundas de classes sociais menos favorecidas. Sendo certo também que é comprovado estatisticamente que a atual composição da Câmara Alta é a mais plural e diversificada de entre as instituições parlamentares do Reino Unido. Há mais representantes de minorias, imigrantes e de pessoas com necessidades especiais do que em qualquer outra casa parlamentar democraticamente eleita. Desde a reforma de Tony Blair, ocorrida nos anos 1990, a maioria dos lords tradicionais perderam o direito de assento hereditário na câmara alta.

O tema da reforma da Câmara dos Lordes permanecerá em destaque no Parlamento britânico.

Se a Câmara dos Lordes é hoje o símbolo da crise do modelo parlamentar, que se verifica em todo o mundo, parece ser bom lembrar que, em 2015, se celebrarão 410 anos da “Conspiração da Pólvora”, um episódio histórico até hoje lembrado no Reino Unido e cuja principal personagem, o católico Guy Fawkes, tornou-se o símbolo dos protestos ocorridos no Brasil em 2013, com a máscara usada por centenas de ativistas.

Em 1605, um grupo de conspiradores tentou assassinar o rei Jaime I durante a cerimônia de abertura do Parlamento, que ocorreria no dia 5 de novembro, na Câmara dos Lordes. Guy Fawkes, um experiente militar nas campanhas da Guerra Hispano-Holandesa, foi encarregado de minar os subterrâneos da House of Lords com barris de pólvora. A conspiração foi denunciada e conseguiu-se impedir a explosão. Os envolvidos foram presos, julgados e condenados à morte. Desde então, as noites de 5 de novembro tornaram-se data de comemoração popular no Reino Unido. É a Bonfire Night ou Noite de Guy Fawkes.

Hoje, a efígie de Guy Fawkes difundiu-se na cultura popular contemporânea graças aos quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd, posteriormente transformados no filme V de Vingança, de James McTeigue. A máscara com o sorriso e o bigode de Fawkes converteu-se em um símbolo de rebeldia. A metáfora da tentativa de explosão da Câmara dos Lordes e do Parlamento britânico, um atentado contra um rei e os membros do Legislativo, passou por uma releitura e ganhou a simpatia de muitos “indignados”.

Com todos os problemas, o Parlamento e o modelo de democracia parlamentar ainda é a forma possível de filtragem da soberania popular e de transformação de milhões de vontades individuais em algo parecido com o sonho iluminista de uma “vontade geral” ou de uma “vontade nacional”, dois conceitos datados e que merecem ser lidos com a necessária contextualização histórica. É provável que tenha havido a reconversão histórica de um atentado contra o sistema parlamentar, por razões religiosas, no século XVII, em um desejo de implosão do “sistema”, nos dias atuais.

É preciso lembrar, porém, que foi esse modelo falido e criticado que resistiu durante os trágicos anos de 1939-1945 ao avanço das forças totalitárias do nazifascismo na decadente Europa dos anos 1930, com o apoio heróico das forças soviéticas a partir de 1941.

Em 1939, o Reino Unido fez uma declaração formal de guerra às potências do Eixo, algo que foi ridicularizado por Hitler. Essa declaração foi lida por um arauto, com trajes do século XVII, na entrada do Parlamento britânico. E, mesmo após os bombardeios a Londres e a destruição de sua sede, as Câmaras dos Comuns e dos Lordes nunca deixaram de se reunir.

Se não há mais homens e mulheres com a legitimidade ou com as qualidades daqueles tempos sombrios, isso não pode ser afirmado peremptoriamente, embora haja suspeitas a respeito de que isso é verdade. Independentemente dessa visão pessimista, o modelo parlamentar merece ser defendido, com todas suas contradições e mazelas. A democracia ainda precisa do Parlamento. A História comprova que os inimigos do Parlamento nunca desejaram outra coisa que não o poder absoluto. E não se precisa sair do Brasil para saber disso.

 Otavio Luiz Rodrigues Junior

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