"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Hobbes e a justificação do estado soberano


Apesar da variação nas definições, a soberania sempre se relaciona à autoridade suprema. Propor uma soberania que permita competição de poder, jurisdição ou domínio é cair em contradição. No entanto, parece intuitivo que a ideia de monopólios baseados na força precisa ser justificada. Assim como com qualquer outro monopólio, não é do interesse dos consumidores a existência de um único provedor de um serviço.

A não ser que os membros de uma sociedade se enxerguem como pessoas essencialmente desiguais perante a lei e a moral, a primeira questão que se levanta é: por que uma pessoa ou um grupo deve ter tamanho privilégio? Bem se sabe que monopólios abrem a possibilidade de abuso de poder pelos seus detentores. Em segundo lugar, um bem ou serviço oferecido por um monopólio provavelmente terá um preço e um custo maiores e uma qualidade inferior aos daquele oferecido sob um sistema de competição.

O propósito de O Leviatã é construir uma justificativa para a soberania tanto em alicerces morais quanto consequencialistas. O argumento de Hobbes em favor da soberania deve ser um dos mais intuitivos e, por consequência, um dos mais poderosos e duradouros. Seu impacto atravessou os séculos como círculos concêntricos através da fábrica da história. Mesmo que a formulação do argumento tenha mudado desde o século XVII, sua lógica continua a mesma.

Atualmente, economistas e cientistas políticos subjugaram o texto de Hobbes aos números da teoria de jogos, para adaptá-lo à moda atual. A essência do argumento, no entanto, continua a ser facilmente detectável nas palavras originais do livro que John Rawls considerava “a maior obra de filosofia política da língua inglesa”:

Se um pacto for feito no qual nenhuma das partes aja presentemente, mas confiem uma na outra; na condição de mera Natureza, (…) é Vazio; mas ser houver um Poder comum estabelecido sobre ambas, com direito e força suficientes para obrigar à ação; não é Vazio. Pois aquele que age antes não tem segurança de que o outro agirá depois; porque os laços das palavras são fracos demais (…) sem o temor de algum Poder coercitivo. (…) E portanto aquele que age primeiro não faz senão se trair diante do inimigo (Hobbes 1909, p. 105).

Tirando os excessos e adicionando alguma sobriedade contemporânea, encontra-se o mesmo argumento na base da obra mais popular de filosofia política do século passado . Em Uma Teoria de Justiça, John Rawls escreve que “a ideia mais fundamental nessa concepção de justiça é a ideia de uma sociedade como um sistema justo de cooperação social no tempo de uma geração para a outra.”

Esse sistema de cooperação social, tão central à filosofia política de Ralws se assenta, em última instância, na presunção que fundamenta do conceito de soberania hobbesiano. O “medo de algum poder coercitivo” ainda é condição necessária para a “confiança mútua”:

É razoável presumir que mesmo em uma sociedade bem-ordenada os poderes coercitivos do governo são de algum modo necessários para a estabilidade da cooperação social. Pois embora os homens saibam que compartilham de um senso comum de justiça e que cada um quer aderir as arranjos existentes, eles podem apesar disso não ter total confiança uns nos outros. Eles podem suspeitar que alguns não estão fazendo sua parte, e então podem ser tentados a não fazer a sua. A consciência geral dessas tentações pode eventualmente fazer com que o esquema todo desmorone. (Rawls, 1999, p. 240)

O fato de que a contenção de Rawls se dirige à cooperação enquanto que a de Hobbes tenta escapar do medo não passa de um detalhe menos – revela visões de mundo distintas unidas pelo mesmo raciocínio. As sociedades que cada autor imagina apenas podem ser concebidas sob a ameaça de coerção, o que faz que seja do interesse de cada membro da sociedade alienar aos governantes o poder necessário para governar. Tão logo se aceita esse elemento vital ao plano mestre de Hobbes, uma premissa menos pode ser alocada dentro do silogismo que permeia o Leviatã:

1) O que quer que se faça a um homem, que se conforme à sua Vontade transmitida àquele que o faz não é Agressão a ele;

2) Todo o Poder Soberano é originalmente dado pelo consentimento de cada um dos Súditos;

3) Segue-se que o quer quer que [o Soberano Instituído] faz não pode ser Agressão contra nenhum de seus Súditos; nem pode ele ser por estes acusado de qualquer Injustiça.

Platão já insinuava que os cidadãos firmavam um contrato com o estado. Sócrates entendia que, porque ele não havia deixado Atenas antes de seu julgamento, ele havia “entrado em um contrato implícito de que fará como [as Leis] ordenarem”.

Na época de Hobbes, no entanto, era a explicação orgânica do estado soberano que prevalecia, e não a justificativa contratual.

Quando O Leviatã foi escrito, as concepções aristotélicas clássicas da natureza das entidades, revitalizadas com a escolástica, estavam em declínio. A obediência à autoridade política não conseguiria se sustentar como algo tão natural quando os comandos da mente para o resto do corpo. A obrigação moral dos indivíduos para com o estado, a instituição social por excelência, não era algo tão intuitivo para a Europa do século XVII.

Em geral, o espírito do contratualismo estava alinhado com a ética da reforma. Se a autoridade dos homens que constituíam a santa igreja podia ser contestada pelos seus membros, por que a autoridade dos homens que constituíam o estado deveria estar fora de controvérsias? Não era mais o grupo, mas as partes individuais e seu poder de escolha o valor final da teoria moral protestante. A insurgência religiosa era evidência de que as pessoas se viam como indivíduos racionais e livres. Tal sociedade precisava de fundamentos modernos para uma teoria de soberania. Era isso que o contrato social prometia oferecer: a obediência emanada da liberdade.



A segunda parte desta série é dedicada a explicar como Hobbes tenta alinhar absolutismo divino com liberdade negativa.

O determinismo de Hobbes permite que as pessoas tenham liberdade sem autonomia. Assim como uma massa de água pode correr livremente desde que não haja obstáculos em seu percurso, a liberdade nada mais é do que “a ausência de impedimentos externos”. Os seres humanos são livres enquanto “vontade, desejo e inclinação” não encontram obstáculos para se atualizarem em ações, mas nossas vontades e desejos se assemelham a um apetite animal irresistível que se alimenta do “medo da morte violenta”. Não raro, a nossa vontade colide com a razão. E deve ser a razão, junto a outras características que o mundo externo imprime em nós, que condiciona nossa vontade.

A vontade é o elemento definitivo de todos os acordos, e uma fonte de obrigações. Mas, por estar em repetitivo desacordo com a razão, a vontade humana carece de autoridade moral. Na verdade, nossa vontade deve se submeter à autoridade moral que vem de Deus e que é mediada pelo escolhido de Deus, o soberano. Hobbes consegue acomodar vontade, liberdade, e obediência na mesma correnteza que flui desde Deus e que alcança o mundo por meio do estado. A razão humana, para Hobbes, apenas está correta quando garante ao soberano a adoração que lhe é adequada.

Talvez nenhum conceito abrace melhor essa essência da retórica majestosa de Hobbes do que a “vontade para a obediência”. Seu propósito é dar uma harmonia geométrica à sociedade. Liberdade e vontade são elementos vetoriais da natureza humana que devem ser mantidos em paralelo aos comandos divinos. Resistência ao soberano é apenas permitida para a preservação própria. De outro modo, o indivíduo se torna um obstáculo à metafísica fluente de Hobbes.

Quando colocada em contexto com a sua antropologia, a justificação hobbesiana da soberania começa a se revelar um absolutismo racionalista. De certa maneira, Hobbes corrompeu o absolutismo de Bodin colocando o soberano acima da Igreja. O soberano de Bodin é absoluto no sentido em que não deve ter que obedecer às leis promulgadas pelos soberanos que lhe precederam. Ele continua sendo, no entanto, compelido pela lei divina. Em Hobbes, o soberano está em um estado de guerra no qual “nada pode ser injusto”.

Com Hobbes, os limites medievais sobre o rei (sujeitando-o às leis de Deus) desaparecem em definitivo. As leis do rei, na prática, são tão mandatórias quanto as leis de Deus. Hobbes não revolucionou o conceito do direito divino, apenas o manipulou. A vontade do soberano hobbesiano estaria constantemente alinhada com a vontade de Deus, mas ele adicionou que a vontade do povo estaria sempre de acordo com a vontade do soberano. A soberania, para Hobbes, é essa “alma artificial” que “dá vida e movimento ao corpo inteiro”. É assim que Hobbes compatibiliza liberdade como ausência de restrições com as “cadeias artificiais” das leis civis.



Depois de falar sobre a antropologia de Hobbes, vamos tratar de sua epistemologia.

Para o filósofo inglês, todo o nosso conhecimento é adquirido por meio dos sentidos, pelo mundo externo se pressionando contra o homem. Esses sentidos colocam o homem em movimento intelectual. A imaginação e a memória seriam apenas a redução da velocidade do movimento recebido pelas impressões (em sentido quase literal) sensoriais. As memórias podem ser arranjadas e combinadas, gerando diferentes experiências no interior da mente. Os pensamentos resultantes de tais combinações estão sempre conectados uns aos outros, fluindo de acordo com o movimento provocado pelo mundo exterior.

Para comunicar nossos pensamentos, utilizamos palavras. A razão é a adição ou a subtração do arranjo de palavras. Se dois homens diferem em seus raciocínios, é porque ocorreu uma falha de cálculo, apenas solucionável por um juiz.

A mesma aritmética aplica-se aos apetites. Os apetites são divididos em duas categorias: quando a natureza move o homem em direção a algo, nós temos um desejo. Quando move o homem para longe de algo, temos uma aversão. As ações resultam da deliberação, isto é, da operação aritmética dos desejos menos as aversões.

Ao se cancelarem, o resultado remanescente é a vontade. Os apetites, a deliberação e a vontade são comuns aos homens e aos animais. Essa operação com os dados que a natureza entra no ser humano (incluindo a deliberação entre bem e mal) não consegue chegar à verdade, porque o conhecimento nada mais é do que as impressões naturais sobre nossos sentidos. A razão tampouco pode ser confiada nessa missão, porque nenhuma pessoa em particular pode ter certeza de que sua conta está correta.

Se por um lado, a epistemologia de Hobbes começa a nos fazer enxergar a necessidade de um soberano, por outro nos revela contradições fundamentais. Se Hobbes acredita ser capaz de poder ensinar algo aos seus leitores, falta nexo entre seu propósito e sua filosofia.

Dentro do sistema hobbesiano, o Leviatã seria o resultado de uma grande equação na mente de Hobbes a partir da qual conhecimento algum pode ser extraído. Se seu discurso realmente produz conhecimento na cabeça do leitor, restam-nos duas opções:

1) Hobbes é um ser sobre humano; ou

2) existe alguma forma de conhecimento que o cérebro humano adquire que não é movido simplesmente por forças exteriores, mas da codificação das ideias geradas por uma mente alheia que podem ser decodificadas pela nossa mente.

Quando eu aprendo, minha mente muda. É necessária uma intenção nas pessoas de criar essa comunicação que é mais profunda do que Hobbes pressupõe. O primeiro golpe contra o conceito de estado soberano de Hobbes deve ser dado aqui, contra a sua noção cartesiana de que os homens são complexos e mecânicos como qualquer máquina de corda e que, portanto, devem ser ativados por agentes externos, incluindo o próprio Hobbes.

O Leviatã é, assim, um exemplo daquilo que Olavo de Carvalho chama de paralaxe cognitiva:

Toda afirmação filosófica sobre a realidade em geral, a humanidade em geral ou o conhecimento em geral inclui necessariamente, entre os objetos a que se aplica, a pessoa real do emissor e a situação de discurso na qual a afirmação é feita. O que quer que um homem diga sobre esses assuntos ele diz também sobre si mesmo. Ninguém tem o direito de constituir-se, sem mais nem menos, em exceção a uma teoria que pretenda versar sobre o gênero ou espécie a que ele próprio pertence.

Há apenas três exceções à espécie humana no Leviatã de Hobbes: a Igreja, o Estado Soberano e Thomas Hobbes. Os dois primeiros derivam sua autoridade sobrehumana de Deus. Como o conhecimento sobre as leis positivas apenas pode ser adquirido por meio da revelação direta de Deus, e Hobbes o possui, devo concluir que ele também é excepcional. Afinal, ele não apenas tenta ser um historiador, mas pretende produzir um conhecimento que o leitor não possuía previamente.

Após a leitura da teoria de conhecimento de Hobbes, ficamos com a expectativa de que nada de novo pode surgir no restante do livro, pois conhecimento não se adquire a partir do discurso, apenas dos sentidos.

 Diogo Costa

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