"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

segunda-feira, 18 de março de 2013

Deus, o diabo e ética eleitoral


Permita o leitor que eu comece com uma observação fora dos quadrantes jornalísticos. Se tudo, conforme aprendi quando jovem, é político (logo, o político inclui o religioso e o moral) e se nós, brasileiros, veneramos o “jogo” ou “briga política” a ser revelada ou esquecida quando os interesses são atendidos e os objetivos alcançados, por que diabos a política é o campo menos confiável e mais fluido da sociedade brasileira e do mundo moderno em geral?

Se Deus morreu e o papa renunciou; se não há mais religião e a moralidade perdeu para o “politicamente correto”; por que então a “Política” (com p maiúsculo) não é o campo mais sério, consistente e confiável do sistema em que vivemos e eventualmente morremos?

Faço essa pergunta porque temos belos bate-bocas no palco do teatro político nacional. FHC contra Dilma; Lula contra FHC e Eduardo Campos; os irmãos Cid e Ciro Gomes contra Campos; Sérgio Cabral contra Lindbergh Farias; e, como arremate, Lula se imaginando um novo Abraham Lincoln.

Nesse ambiente de bate-boca, a presidente Dilma, suprema magistrada da nação, disse uma frase decisiva: “Podemos fazer o diabo só na hora da eleição. Quando a gente está no exercício do mandato, temos que nos respeitar”. Como, pergunta o ouvinte, o político eleito se transformará num governante correto – e eventualmente pensar que é Deus – quando se elegeu fazendo o diabo? Outra grave questão embutida na fala de Dilma é como levar a sério esse rito de passagem sagrado das democracias liberais e competitivas – as eleições –, com todo mundo com o diabo no corpo. Fazendo tudo o que der na telha e, assim, confirmando que em política vale tudo, menos perder. E ganhar de qualquer modo, como estamos fartos de saber, pode significar uma desastrosa perda para o país.

Quando a presidente Dilma Rousseff diz, em resposta ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que “nós não herdamos nada, nós construímos”, ela tenta evitar o impossível. O ponto é o seguinte: como não lidar com heranças que, afinal, são a parte mais humana da vida social – pois tudo o que somos é herdado e aprendido de outras gerações e linhagens —, sem ter de abandonar o esquerdismo infantil que pensa construir o Brasil por si mesmo, naquela linha lulista do “nunca antes se fez isso ou aquilo na história deste país”?

A autossuficiência que surge abertamente na fala da presidente Dilma nunca foi boa conselheira política. Ela leva à ausência de diálogo e, no limite, à eliminação do outro. O outro, na democracia, é a oposição política que, perdendo ou vencendo, vem confirmar a difícil vocação liberal de viver ao redor de um sistema de poder que muda seus atores, mantendo, porém, seus princípios e papéis. Uma oposição que deve se fortalecer na medida mesma da centralização, das tendências estatizantes, do aumento da inflação e do “pibinho”.

Entendo que, num país que no campo da “política” tudo permite, o problema não é saber se a presidente é ingrata ou não, como disse FHC. O que está em jogo é a questão da continuidade de certas políticas públicas e de uma visão estratégica do lugar do Brasil neste mundo globalizado e – por isso mesmo – confuso em que vivemos.

Todo sistema que recusa o despotismo – coisa que ainda temos de politizar com seriedade no Brasil – tem valores que ninguém discute. Muitos modos de fazer e pensar os problemas do país são necessariamente discutíveis. As democracias liberais são sistemas envolvidos em batalhas (mas não em guerras) rotineiras de opinião. Se não fossem, a democracia liberal acabaria. Quem inventou a herança como um conceito político negativo – a famosa “herança maldita” – não foi o PSDB nem a oposição. Foi justamente a reação petista que recusou literalmente todas as transformações realizadas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso.
Havia todo um discurso de recusa, embutido na fórmula da “herança maldita”, que criticava a privatização da telefonia, a reestruturação do sistema bancário e financeiro e o Plano Real — cujo fracasso o PT previu. Até que o contexto engendrado graças ao Plano Real revelou sua eficácia e fez surgir os “pibões” do Lula, porque, mesmo com as crises, todos os marcos financeiros estavam compostos.

Só um partido de índole antidemocrática pode usar a expressão “herança maldita” quando o regime eleitoral que o levou ao poder estabelece a rotatividade. Seria possível a um time de futebol campeão falar que o título que acaba de conquistar e o futebol em que mostrou excelência são uma herança maldita? Se fizer isso, obviamente cospe no prato que comeu. Porque rejeita a linhagem que o levou ao campeonato e ao poder que – eis uma lição do futebol e do esporte em geral – deve ser mantida e devolvida com avanços ao novo vencedor.

Existe no Brasil uma dificuldade em manter lealdade a sistemas políticos eleitorais de cunho liberal e competitivo e a administrações éticas. O ético aqui não é palavra para uso eleitoreiro, mas um valor que, entre outras coisas, coage o ator a limitar seu projeto de “levar vantagem em tudo” (essa máxima conhecida como Lei de Gerson), uma tendência onipresente em nossa prática política.

Roberto DaMatta

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