"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sábado, 21 de abril de 2012

O Brasil de todos nós


Todos nós somos fadados a falar do Brasil. O Brasil é o todo que nos engloba e nós somos a parte que, sem esse todo, perde o chão ou a terra. Terra é um conceito arcaico. Desterrar foi uma punição tão tenebrosa quanto a morte. Que falem os exilados de todos os calibres.

Em inglês ainda se usa “land” (jamais “earth”), mas você tem de assistir a um velho filme de John Ford, como “O Homem Que Matou o Facínora”, para ouvi-la claramente na expressão “the law of the land”, porque, nessa película, trata-se de estabelecer o governo da lei numa “terra” sem regras impessoais: num sistema, as normas que não dependem das pessoas que governam as condutas individuais. No filme, vemos uma sociedade onde as relações pessoais com seus sentimentos particulares de simpatia, dívida, ousadia, como poder e o poder da ousadia, são dominantes e inventam a figura de um facínora cujo nome é significativamente Liberty Valance. É justamente para regular essa liberty que existe a regra da lei geral, com suas instituições e agentes.

No filme, a ausência da lei se faz por meio da violência cara a cara, cujos símbolos são o revólver e o chicote. Neste Brasil de todos nós, as tramoias são feitas – eis o que constrange e revolta – indiretamente, com a lei. No Brasil, a lei é onipresente, mas ela não tem alma, porque nela a autoridade vê apenas a letra, deixando de fora o espírito dos valores da sociedade da qual ela faz parte. Ora, uma lei sem alma é o que vemos revoltados em todos os poderes da república onde se prefere atuar mecânica – ou retoricamente -, deixando de lado a alma que levaria a um controle dos interesses apaixonados – coisa que os liberais clássicos conheciam bem.

Assim, temos testemunhado muita letra e pouca alma, muito direito e pouca ética. Muita técnica legal e pouco sentimento de justiça igualitária. Seja no julgamento absurdo das menores violentadas, seja na reação às roubalheiras do dinheiro público pelas pessoas justamente encarregadas de administrá-lo.

O conceito de “terra” está enraizado e jamais foi estudado criticamente entre nós. Pois se a “terrinha” fala de um Portugal da origem, a “terra” é o Brasil: aquele lugar onde o gorjeio das aves distinguem o “lá” (do exílio) do “cá” como o lugar plano do aqui e agora. A terra que me recebeu neste teatro. Que me obriga a ter saudade e que, um dia – queira Deus -, vai me receber novamente no seu doce seio.

Ainda sentimos mais saudade do Brasil como terra do que como país, para ampliar um estudo magistral que José Guilherme Merquior faz da poesia “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Mas quem é que hoje em dia assiste a filmes de John Ford e lê Gonçalves Dias?, interrogaria o leitor abarrotado de Titanics, Rambos e da poesia inefável das músicas sertanejas?

O mundo – seu cronista reacionário – mudou!

Mas, respondo eu: de fato não temos mais as aves gorjeando nem John Fords. Mas, continuamos a sofrer a vergonha das roubalheiras promovidas por um sistema que insiste em não admitir que um “homem público” não tem nem pode ter – dentro dos limites do bom senso – vida privada! Não passamos uma semana sequer sem alguma novidade negativa em relação ao campo público, ao mesmo tempo que o mundo todo vai ficando cada vez mais transparente para cada um de nós.

E a nossa novidade é velha: alguma pessoa pública tirou vantagem pessoal de algum cargo governamental, seja na contratação superfaturada de alguma obra ou na compra de um produto; seja numa aposentadoria indevida, na qual a lei é ampliada para o seu caso; seja na obtenção – vejam o surrealismo – de um doutoramento em que todos os membros da banca fazem tudo, menos examinar o candidato ministro, o que envilece gente como eu que, para obter o mesmo grau, fiz pesquisa, escrevi tese inédita, e como professor, examinador e eventual coordenador de um programa de pós-graduação no Museu Nacional, jamais confundi pessoa e papel na esfera do poder com a vida intelectual. Tudo foi dentro do regimento, mas foi ético?, pergunta este pateta reacionário que vos escreve.

Alguns cargos públicos, sobretudo os de presidente, papa, rei, governador e prefeito, que o jurista inglês Henry Maine chamava de “instituições solitárias”, são papéis ocupados exclusivamente por um ator que, neles, torna-se um “personagem”, uma “figura” ou um “figurão” (quando fazem inocentes malfeitos, como roubar alguns milhões de reais de catástrofes). Sua característica básica é que eles englobam totalmente o ator e não permitem que ele possa sair dos seus requisitos legais e estruturais. Quando investidos nesses papéis, os atores têm de pesar cada palavra, gesto ou relação.

Daí a ética e o viés de sacrifício que os cercam, pois que exigem do ator uma disciplina que nem sempre é seguida porque em sociedades marcadas pela desigualdade, pelo aristocratismo oculto e resistente dos “homens bons” e de suas múltiplas elites (inclusive as populares), como ocorre justamente neste Brasil de todos nós. Aqui arremato: não é o papel que ocupa a pessoa, mas é a pessoa quem domina, apropria-se e, mais das vezes, avilta o papel.

Falta esse debate na nossa esfera política que adora os gregos como Demócrito e Platão, mas carece de Tocqueville, de Weber, de Arendt e de Jaspers. De gente capaz de dizer: isso eu não faço!

Por: Roberto DaMatta 

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