"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

domingo, 4 de março de 2012

O que o Carnaval diz do Brasil?

No Brasil, o Carnaval nos permite abandonar as hierarquias e os tabus de um sistema altamente repressivo


Toda celebração nacional tem um mito, uma história que explica e justifica a sua celebração. O melhor exemplo é o nosso "7 de setembro". Uma arrogada realidade histórica ensina que já em agosto de 1822 Dom Pedro I rompera com Portugal declarando inimigas as tropas lusas que estavam em nosso território. Mas o mito, conforme aprendemos na escola primária, narra um gesto muito mais dramático e revelador. Em viagem a São Paulo acompanhado por sua guarda de honra (chamada de "dragões"), Dom Pedro recebe a correspondência de Portugal limitando seu poder. Reagindo à diminuição de sua liberdade, arranca do seu dólmã as fitas com as cores vermelha e azul das cortes portuguesas, desembainha a espada e grita: "Independência ou morte!".


Estava declarada nossa independência às margens do Ipiranga – um riacho de "água vermelha" (i-piranga em tupi), como mostra o quadro consagrador de Pedro Américo. O ritual que celebra esse mito repete todo ano o gesto de uma forma estilizada: há uma parada militar onde se afirma o poderio brasileiro. O grito "original" (sinal do rom-pimento) é substituído por discursos ou pelo canto do hino nacional. A Independência segue a norma dos ritos da ordem e tem um centro, um propósito e um personagem.

Tudo isso contrasta notavelmente com o Carnaval, que não tem um mito de origem nem é uma comemoração de algum ato ou pessoa. Na festa de Momo, temos o rito, mas não temos o mito. Trata-se de uma festa da desordem e, como tal, ela promove uma infinidade de personagens e eventos. Em contraste com a Independência, o Carnaval ocorre dentro de um tempo bíblico. O Carnaval, como o futebol, não foi inventado no Brasil e faz parte de uma tradição arcaica na qual se coloca em correspondência a mudança das estações do ano ou anomalias cósmicas (como os eclipses) e o barulho por meio da percussão, o insulto e o as-sassinato dos deuses.


Ele ocorre antes da Quaresma, que culmina no sacrifício de Cristo, o Deus que se fez homem para salvar a humanidade, conforme reza a tradição cristã. Antes então de um período de disciplina (onde não se come a carne – donde: carne levare), permite-se o excesso que sinaliza o fim de um recreio.

No passado, o Carnaval foi uma celebração obrigatória: todos tinham de brincá-lo. Hoje, ele é um longo feriado, embora con-tinue preservando sua escritura original que suspende e inverte as regras das rotinas mais equilibradas. A norma é esbaldar-se, brincar e pular até cair. Temos então uma revelação interessante: como uma festa baseada no "poder fazer tudo" acontece na terra do "não pode"? Um "não pode" sempre dirigido para quem não é rico, bem de vida ou faz parte do governo?

A pergunta contém sua resposta. Só existe Carnaval onde há o desejo de ver o mundo de cabeça para baixo. A permissividade planejada e permitida é, no fundo, uma licença "legal" (conforme taxamos tudo o que é bom no Brasil) para abandonar, por um curto período de tempo, as hierarquias e os tabus de um sistema altamente repressivo. Tão profundamente aristocrático e desigual que seus membros precisam de um ritual permissivo. Testemunha isso o fato de o Carnaval ter sido proibido na Espanha e em Portugal nas ditaduras de Franco e Salazar.


No Brasil, as tentativas de proibi-lo sempre estiveram associadas ao elitismo intelectual que vê na festa um abuso dos bons costumes e um exemplo de "atraso" nacional. Enfim, como perda de um tempo precioso, destinado a produzir e a fazer as grandes reformas e a "revolução" de que tanto precisamos. Como o futebol, o Carnaval seria um ópio ou, na melhor hipótese, um remédio para o povo.

O que fazer com o puritanismo globalizado que manda trabalhar, poupar e ser recatado, se o Carnaval apresenta aos seus celebrantes uma verdade alternativa: aproveite enquanto pode; é hoje só, amanhã não tem mais… E, ao lado dessa mensagem, deixa que o pobre vire divindade, reduzindo o patrão ao papel de espectador de seus empregados. Não satisfeito com tais ab-surdos, ele faz o governo destinar verbas para suas "escolas de samba", cujas sedes são melhores que as escolas e os hospitais. Pode-se urinar, beijar e fazer outras coisas na rua em cidades cujas vias públicas são finalmente destinadas a nós, seus cidadãos – essas ruas que, sem os nossos mortíferos automóveis, podem ser desfrutadas porque estamos num mundo sem donos e patrões.
Nada melhor do que a marchinha de Lamartine Babo, escrita em 1934, para mostrar o que o Carnaval diz do Brasil:

Quem foi que inventou o Brasil?
– Foi seu Cabral! Foi seu Cabral!
No dia 21 de abril
Dois meses depois do Carnaval!

Se o mundo diário nos obriga a pensar a festa como um resultado ou um prêmio, a música e o mito levam a ler o Brasil irre-mediavelmente marcado pelo Carnaval. Nele, a festa não depende do Brasil, mas, pelo contrário, é o Brasil que dela decorre. O compositor percebe como o Carnaval escapa do viés utilitário que só enxerga o mundo como controlado por partidos e classes sociais. Nessa sociedade que, até 1888, teve escravos, que até ontem teve imperadores e barões e, no seu período republicano, mais ditaduras do que regimes igualitários e livres, entende-se por que o Rei Momo vem periodicamente governar.


Pois, mais do que festa, o Carnaval é o espelho pelo qual vemos a nós mesmos por meio da estética dos subordinados. Esses que amam o luxo e o enfeite adoram o exagerado e o invejável. E assim reproduzem seus superiores por meio da licença ampla concedida pela permissividade do ritual. Desse modo, abusam tanto quanto seus superiores o fazem no mundo diário, onde desfilam com suas falcatruas, mentiras e roubos da coisa pública, sem ser punidos.
Penso, pois, que o Carnaval põe o Brasil de ponta-cabeça. Num país onde a liberdade é privilégio de uns poucos e é sempre lida por seu lado legal e cívico, a festa abre nossa vida a uma liberdade sensual, nisso que o mundo burguês chama de libertinagem. Dando livre passagem ao corpo, o Carnaval destitui posicionamentos sociais fixos e rígidos, permitindo a "fantasia", que inventa novas identidades e dá uma enorme elasticidade a todos os papéis sociais reguladores.


Se Shakespeare nos visitasse, confirmaria seu famoso axioma segundo o qual o mundo é um palco. E descobriria, indo além de si mesmo, que, nesse cenário de tragédias, injustiças, sofrimento e reveses, a própria morte é convidada. Pois, no Carnaval, os homens desmorali-zam a morte, cantando e dançando com ela. Reafirmando o riso como nosso único consolo. Esse riso carnavalesco que cora-josamente permite rir de nossas próprias desgraças.

 Roberto DaMatta

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