"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Máscaras republicanas

Multidões de mascarados e maquiados com cores alegóricas de nacionalidades envolvidas nas disputas da Copa do Mundo falam por esse meio uma linguagem que simbolicamente quer dizer muito mais do que parece. Trata-se de um ritual cíclico de renovação de identidades nacionais, expressas nos ornamentos e nos paramentos do que é, funcionalmente, uma nova religião no vazio contemporâneo.

Aqui no Brasil as manifestações simbólicas relacionadas com o futebol e seus significados têm tudo a ver com o modo como entre nós se difundiu a modernidade, nas peculiaridades de nossa história social.


Embora não fosse essa a intenção, rapidamente esse esporte assumiu entre nós funções sociais extrafutebolísticas que se prolongam até nossos dias e respondem por sua imensa popularidade. A República, em que todos se tornaram juridicamente brancos, sucedeu a monarquia segmentada em senhores e escravos, brancos e negros, todos acomodados numa dessas duas identidades.

A República criou o brasileiro genérico e abstrato. O advento do futebol entre nós coincidiu com a busca de identidades reais para preencher as incertezas dessa ficção jurídica. Clubes futebolísticos de nacionalidades, de empresas, de bairros, de opções subjetivas disfarçaram as diferenças sociais reais e profundas, sobrepuseram-se a elas e tornaram funcionais os conflitos próprios da nova realidade criada pela abolição da escravatura.

Diversamente do que era próprio da escravidão, da inserção rígida na condição de livre ou de escravo, a nova realidade, através do futebol que se difundiu progressivamente, criou polarizações flexíveis, embora, no limite, violentas, como se vê na ação de torcidas organizadas. No futebol há espaço para acomodações e inclusões, até porque sem a diversidade de clubes e sem a competição o futebol não teria sentido.

O receituário da modernidade inclui, justamente, esses detalhes de convivência com a diversidade e com a rotatividade dos que triunfam. Nela, a vida recomeça continuamente; depois da vitória é preciso lutar pela vitória seguinte. O futebol é republicano, não é monárquico nem ditatorial. Essencialmente, massificou e institucionalizou a competição e a concorrência, elevou-as à condição de valores sociais e democratizou as oportunidades de vitória de cada um no rodízio dos vitoriosos.

Nele, a derrota nunca é definitiva nem permanente. Por esse meio, o que era mero requisito do funcionamento do mercado e da multiplicação do capital tornou-se expressamente um rito de difusão de seus princípios no modo de vida, na mentalidade e na vida cotidiana das pessoas comuns, fazendo desta uma sociedade de acomodações e superações.


É nesse sentido que o futebol só pode existir em sociedades competitivas e de antagonismos sociais administráveis. Fora delas, não é compreendido. Há alguns anos, um antropólogo, que fora meu aluno e que estava fazendo pesquisa com os índios Xerente, de Goiás, narrou-me sua surpresa ao ver que os índios haviam adotado entusiasticamente o futebol.

Com uma diferença: os 22 jogadores não atuavam como dois times de 11, mas como um único time jogando contra a bola, perseguida em campo todo o tempo. Interpretaram o futebol como um ritual de caça. Algo próprio de uma sociedade tribal e comunitária.

A nós brasileiros, cada vez mais distanciados da idéia republicana de nação e afundados no sectarismo das identidades parciais e corporativas do populismo político, racial e religioso, o verde-amarelo das pinturas faciais e dos trajes, das alegorias e das máscaras nos restitui temporariamente a grandeza da nossa identidade nacional sacrificada nas conveniências e nos interesses das minorias.

As máscaras estão historicamente ligadas à necessidade social e política do mascaramento da morte e do medo da morte. Elas dão fisionomia às ausências, ao que está desaparecendo, e proclamam, mais do que a euforia da esperança na vitória, a carência de uma identidade abrangente em que nos vejamos como nós e não como alguns.
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* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é Professor Emérito da Universidade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto, 2008), Sociologia da Fotografia e da Imagem (Contexto, 2008), A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008), O Cativeiro da Terra (Contexto, 2010). Publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Aliás, A Semana Revista], domingo, 4 de julho de 2010, p. J7

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