"Nós, os monarcas, somos incontestavelmente constantes em um mundo em constante transformação. Pelo motivo de termos estado sempre aqui, mas também por não nos envolvermos na política cotidiana. Estamos informados das mudanças políticas que acontecem em nossas sociedades, mas não fazemos comentários sobre isso. É nisso que assumimos uma posição única. Nenhum dos outros monarcas europeus interfere na política."

Margarethe II, Rainha da Dinamarca

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Ainda a crise, ainda a Constituição



Luiz Fernando de Moura Ramos, em 17/03/2006.


A Constituição de uma Nação é o documento fundante de seu Estado, sustentáculo dos pressupostos de autoridade e poder de sua ordem política e jurídica, erigida em nome do bem comum, da paz coletiva, encontrando-se em patamar superior a todas as outras leis e instituições do Estado, que a ela se subordinam e dela extraem seu fundamento de validade. Assim é em todas as grandes Nações do mundo, que se pretendem incluídas em um contexto internacional. Deste modo, todos os que vivem em território brasileiro estão submetidos à soberania da Constituição da República Federativa do Brasil, proclamada em 5 de outubro de 1988, e alterada por 58 Emendas Constitucionais até o presente momento — 6 no âmbito do processo de revisão por esta instituído para 1993, e 52 vezes pelo processo ordinário de Emenda nela previsto.

Quero aqui chamar a atenção a todos os estonteantes fatos sobre a política nacional que acompanhamos diariamente em todos os meios de comunicação, dos quais gostaria ainda de destacar dois: as Comissões Parlamentares de Inquérito que, ao longo de 2005, lançaram mais um governo no total descrédito, pelas mais diversas e verdadeiras razões; e ainda a proteção, vista na última semana, por parte da Câmara dos Deputados — órgão do Poder Legislativo Federal —, a criminosos confessos, em que dois membros daquela Casa foram, em plenário, pelo voto secreto de seus pares, absolvidos de irregularidades que reconheceram por final haver cometido, tendo-se em vista a prova cabal contra eles produzida pela própria Casa Legislativa, pela ação de outro órgão interno.

Ressalta aos olhos, em ambos os casos, a total falta de respeito à Constituição, que afirma, com termos pomposos, que todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza. A meu ver trata-se de hipótese daquelas em que faz-se necessário, aos cidadãos que sentem-se de alguma forma submetidos a um estatuto diferente daquele vigente entre os políticos de nosso país, o apelo ao direito de resistência, que não está expresso em nossa atual Constituição, embora natural e suprapositivo, e que pode ser enunciado, em última análise, como o direito que todos têm a resistir a qualquer ordem que ofenda seus direitos, liberdades e garantias, bem como de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.

De fato, o que há por trás destes dois lamentáveis episódios — dentre tantos outros — da vida pública no Brasil, é que, não obstante os incontáveis avanços sociais e de inclusão numa ordem internacional que cada vez mais se interpenetra, mediante o fato da globalização, a origem de todos os problemas pelos quais o Brasil passa hoje em dia se encontram no campo jurídico-político, ou seja, na Constituição, e, valendo-se de uma figuração, a que hoje se encontra vigente entre nós parece ser refém dos Poderes e das instituições que se dizem seus guardiões. Com efeito, esta Constituição nunca foi cumprida em sua integralidade, pois padece de vícios e contradições insanáveis; por outro lado, foi promulgada há 17 anos atrás, para um Brasil que não mais existe, por uma Assembléia Nacional Constituinte que, se por um lado não representava uma verdadeira ruptura com o regime vigente, por outro lado fez-se extremamente eclética, como exigido pela sociedade brasileira à época.


Todos estes fatores vieram a contribuir para que, além de ser muito prolixa e desconexa, para não dizer redundante, não seja um documento elaborado pelas regras mais elementares da técnica jurídica, que se tornam imprescindíveis quando de sua aplicação.

Entretanto, o que há de importante a ser destacado é que o problema institucional do país continua sem solução, mesmo após as 58 Emendas à Constituição, que limitaram-se em mero paliativo — e, por vezes, acobertamento casuístico — dos problemas estruturais que o Brasil tem que enfrentar, sem mais adiamento. Os problemas do Brasil, seja no que tange a seu sistema político, seja no que tange ao sistema jurídico-legal, e principalmente no que tange à Administração Pública, são não apenas urgentes e imediatos, mas também insolúveis a médio e longo prazo, o que pode acarretar a condenação das nossas gerações futuras à falta de planejamento e de zelo, por nós demonstrado a algo que toca fundo em nossa própria existência, por definir os padrões sociais e culturais vigentes, e que vêm a ser nosso modelo de organização comunitária.


A pena pela centralização excessiva dos poderes e da autoridade estatal no Brasil vem sendo expiada por nós diariamente, nesses tempos em que o país inteiro passa o dia inteiro conectado \"ao vivo\" e \"on-line\" em Brasília, de onde brotam escândalos monstruosos e determinações tirânicas, e no entanto sabe muito pouco sobre o cotidiano — cada vez mais triste, violento e pobre — que o circunda.

Até o presente momento, apenas parcas vozes, nem sempre indicativas de alguma mudança efetiva nas relações de força e poder atuais, se fizeram ouvir a este respeito. Claro está que este movimento, para não resultar em mais um malogro, há de prestigiar, antes de tudo, as idéias fundantes do poder de livre iniciativa — este já inscrito nesta Constituição em crise, que muitas vezes nos tolhe o direito de escolha, sob o argumento de que o faz por índole protetiva — e no princípio da subsidiariedade, que prescreve a prevalência da iniciativa em primeiro momento pessoal, ou ainda a familiar, ou comunitária, sobre quaisquer interesses ou ações do Estado, seja em que nível for, que venham a dificultar ou impedir estas iniciativas.

Não haverá nenhuma mudança no panorama do que aí está — e afirmo isso com convicção — sem que o povo brasileiro não se apresse num movimento que tenha a finalidade de convocar uma nova Assembléia Nacional Constituinte. Tal tarefa se faz primordial e imprescindível. É preciso convocá-la agora. Como se diz, \"é pra já\". As graves crises do Estado brasileiro precisam ser debeladas, e deste modo, convenientemente abordadas pelos Constituintes, que precisam, é claro, ser devidamente legitimados — escolhidos e empossados, e designados exclusivamente para a tarefa de redigir a nova Carta Constitucional — pelos cidadãos brasileiros, mediante o exercício do voto. Também mediante votação o povo brasileiro legitimaria, em momento posterior, seu trabalho, ou seja, a nova Carta Constitucional.


AS TRÊS GRANDES CRISES A SEREM DEBELADAS: UMA VISÃO PESSOAL

Identificamos três grandes crises na Constituição Brasileira, nas quais se agrupam todas as outras.

Em primeiro lugar, a crise do sistema de imposição estatal, que se dá principalmente pela negligência, imprudência e imperícia do legislador brasileiro na disciplina da relação do Estado com seus cidadãos, citando exemplificativamente a tributação e a previdência pública, a tutela das relações de trabalho e a prestação de serviços públicos, que foram objeto das inúmeras \"reformas\" nestes 17 anos. Neste particular, ressaltamos que o Estado social-intervencionista, que em tudo intervém e se sente obrigado a intervir, pode ser considerado padrão nas sociedades ocidentais hoje em dia, bem como é mundial o ressentimento pela verdadeira invasão do Estado nas mais diversas questões individuais.

Há que se separar, clara e objetivamente, na Carta Constitucional, o que é pertinente ao campo público, e o que é pertinente ao campo privado, à intimidade das pessoas. A partir daí, buscar uma regulamentação ótima para o que é publico, e a garantia incondicional da liberdade, da segurança e da intimidade das pessoas. Entretanto, em nosso país, por falta de uma estruturação mínima e eficaz, a dita intervenção — sempre insuficiente e excludentemente regulamentada — acaba por se tornar uma \"não-intervenção\", uma situação caótica, o verdadeiro \"ESTADO SEM LEI\".


Pelo contrário, o emaranhado legal engendra toda a sorte de obstáculos jurídicos e políticos para impedir que os cidadãos ou comunidades interessados se organizem, a fim de conseguir a prestação SONEGADA pelo Estado que, naquelas áreas em que deveria obrigatoriamente atuar, assegurando a liberdade e garantindo a segurança a seus cidadãos, bem como ao menos um mínimo de educação e saúde, não consegue estabelecer nem ao menos padrões mínimos de atuação.

Cremos que a crise do Estado, que de fato ocorre em todo mundo, tem no Brasil sua razão de ser em outra crise, qual seja, a de representatividade, neste país em que todos são obrigados a votar — sendo este um grave problema de nosso sistema, que consagra o clientelismo, o aliciamento e a falta de responsabilidade eleitoral — mas que, por distorções graves nos critérios de transformação dos votos em mandatos, bem como pela má distribuição de competências, tornam os cidadãos eleitos totalmente dissociados dos cidadãos que os elegeram, seja por falta de laços sociais que os liguem a determinada comunidade, seja pelo extenso rol de privilégios e prerrogativas que aqueles detém.


Identificamos, ainda, a total degradação do pacto federativo, que se dá pelas inúmeras distorções na representação política dos diversos agentes econômicos do país, espalhados hoje por nosso território de uma forma tal totalmente diversa quando da consolidação da divisão político-territorial do país, em meados do século XIX.

Todos estes fatores conduzem naturalmente ao centralismo político, a ser combatido com concessão de autonomia política e administrativa aos quinhões de território nacional que preencham os requisitos de auto-determinação, auto-gestão e sustentabilidade.


Por outro lado, conduzem à ilegitimidade de fato, cuja apoteose assistimos em todas as poucas oportunidades em que somos chamados a escolher nossos representantes, e que ocorre pela absoluta falta de identidade entre o eleito — que as mais das vezes tornam-se meros símbolos, totens erigidos por alguns grupos instalados na estrutura governamental, guiados muitas vezes por motivos egoísticos e mesquinhos de manutenção de uma situação particular —, e seu eleitor, que muitas vezes nem ao menos se lembra em quem votou (quando não votou movido por favores materiais, como a laje inacabada da casa, óculos, dentaduras, uma prática que, apesar de ser motivo para piadas, é corriqueira em incontáveis localidades do país).

Por último, exatamente como na prática política atual, verificamos que todos os problemas anteriormente mencionados deságuam na crise de legitimação. A desvirtuação dos propósitos das normas legais, ou sua superposição sem sistematização, acarretam o verdadeiro caos de todos os subsistemas do direito positivo, mais notadamente naqueles ramos que concernem diretamente à Administração Pública em suas relações com o cidadão (tributário, fiscal, administrativo, previdenciário), agravados pela quase nula instituição de mecanismos de fiscalização e medição da efetividade da prestação estatal.

A chamada \"insinceridade normativa\", que leva à existência no Brasil de leis que pegam e outras que não pegam, e que leva os cidadãos e os próprios elaboradores das leis a não se sentirem coagidos por elas acarreta, sobretudo, a irrealidade da legislação, o que nos conduz cada vez mais à informalidade, por um lado, tendo-se em vista que as práticas em nenhum campo guardam consonância com as regras estabelecidas; e, por outro lado, ao assistencialismo, tendo-se em vista que um país em que a liberdade política está atrelada à concordância com a situação esquizóide de prescrever uma conduta e agir de modo diverso, não mais se compatibiliza com o desenvolvimento de uma democracia sinceramente plural, e que quer romper com privilégios historicamente estabelecidos.


Uma vez na informalidade, o cidadão passa a ser considerado como clandestino pela Administração Pública, que a tudo vê mas, por estar tão distante e acima de todos, a nada enxerga, e a esta vida de clandestinidade condenado.

É justamente do confronto a todas estas questões, a ser realizado não em gabinetes de burocratas instalados em Brasília, a Capital Federal, mas sim por cada um de nós - que hoje somos meros cidadãos, consumidores, contribuintes, eleitores — que despontará outra discussão, acerca da nossa organização comunitária, a partir das localidades em que habitamos — loteamentos, bairros, distritos, vilas. Assim, esperamos, como efeito mais patente desta discussão, a inversão da ordem dos tópicos aqui estabelecidos, partindo-se então do Homem — e não apenas, mas também cidadão, consumidor, contribuinte, eleitor —, para o Estado, que deve ser um meio, e não um fim em si mesmo, por configurar-se em modo de exercício de poder.


A conclusão deste debate, que passa pela absoluta necessidade de concessão de maior autonomia aos entes federativos, em que seja prestigiada a descentralização e desconcentração dos poderes estatais, levará, inevitavelmente, a um novo modo de organização da Nação Brasileira, que há de se tornar um dia realmente uma Federação

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